A tradição tomasina ensina-nos que a virtude e o vício não são meros comportamentos ocasionais, mas habitus — disposições estáveis da alma adquiridas pela repetição dos atos. São Tomás de Aquino, na Summa Theologica (I-II, q. 49-55), define o habitus como uma qualidade “difícil de remover”, que inclina o ser humano a agir de determinado modo. A virtude é, pois, o habitus boni, a disposição orientada para o bem conforme a razão e ao fim último; o vício é o habitus mali, o desvio reiterado que arrasta o homem para o prazer ilusório e a desordem moral.
Esta distinção ganha vida concreta quando observamos que o bem e o mal não são apenas conceitos, mas ritmos que se instalam na alma. A consciência moral não desperta na abstração, mas no confronto com a prática, por isso o homem não se torna virtuoso por conhecer o bem, mas por praticá-lo continuamente, até que o agir reto se torne natural. Do mesmo modo, o vício nasce e cresce no quotidiano da repetição: cada ato injusto, cada mentira, cada gesto egoísta esculpe no interior uma inclinação que se torna quase fisiológica. É assim que muitos, tendo repetido o mal até à saturação da consciência, matam, roubam ou traem sem remorso — não por serem monstros, mas porque transformaram o erro em respiração. O vício tornou-se-lhes hábito, e o hábito, a sua segunda natureza.
Mas o oposto é igualmente verdadeiro — e luminoso. Há seres em quem a prática constante da misericórdia e do bem faz florescer um habitus santo. Gente que já não sabe viver senão para servir, amar e cuidar e é servindo, amando e cuidando que neles, a virtude deixou de ser escolha e tornou-se necessidade do coração. Madre Teresa de Calcutá, Santa Teresa de Ávila e Teresa de Lisieux e tantas outras "Teresas" são paradigmas desta santificação do hábito: pela repetição do bem, o amor tornou-se o seu modo natural de existir.
Nelas, a graça aperfeiçoou a natureza, e o agir conforme a caridade tornou-se tão espontâneo como respirar.
Então o mesmo ato humano pode ser princípio de edificação ou de ruína. Entre estes dois extremos — o homem que mata sem culpa e o que serve sem esforço — perfila-se o drama e a grandeza da condição humana e o livre-arbítrio. Cada ato, bom ou mau, é uma pedra lançada na edificação da alma: pedra angular quando sustenta o bem, pedra basilar quando consolida o caráter, pedra de tropeço quando desvia a alma da sua ordem natural — essa ordem que, como ensina Tomás de Aquino (Summa Theologica, I-II, q. 94, a. 2), participa da lei eterna e orienta o homem, desde a criação, para o bem e para Deus, seu fim último (I-II, q. 1, a. 8), por isso a ordem natural da alma na sua genese é fazer o bem porém o tempo, imparcial arquiteto, transforma a repetição em caráter e o caráter em destino.
Assim, o homem é, como dizia Tomás de Aquino, “um artesão de si mesmo”: pela constância do bem ergue um templo interior; pela constância do mal, cava a sua própria ruína. Talvez por isso os que praticam o bem não o façam por ignorância do mal, mas por o conhecerem e, ainda assim, decidirem não reproduzi-lo; e os que praticam o mal, não por desconhecimento do bem, mas por já não suportarem a sua exigência. Por tal atrevo-me a dizer que não é o ato em si que edifica ou destrói o homem, mas a consciência e a intenção que o antecedem.
A tomada de consciência do virtuoso e do vicioso é, portanto, mais do que um exercício moral — é um despertar ontológico, perceber que o nosso modo de viver se torna o nosso modo de ser. Respiramos aquilo que cultivamos. E, como recorda São Tomás (I-II, q. 55, a. 3), “a virtude é o que torna o homem bom e a sua obra boa".
Jorge Santos-Silva

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